Os incorruptíveis do Leicester de Claudio Ranieri

Não sou do Leicester. Tenho um clube. Está cá dentro. O meu coração não bate além-fronteiras, nem muito menos se senta num sofá estrangeiro. O meu fígado não se abastece com cervejas com nomes que tentam bater o recorde do(a) 'Guiness', nem sequer dou a oportunidade ao meu estômago de reclamar com as famosas 'croquetas' espanholas. Quando dou por mim a ceder à deprimente sensação de ler a incubadora de comentários irresponsáveis dos diários desportivos - anónimos fanáticos, consumidos pelo excesso de informação que sorvem após os 75cl de café matinais - grito "penalti!" a cada 'scroll down'.

Como podem ser do Southampton? Porque é que o jogo das 14h30m é religiosamente reservado para ver o Manchester City, ou o Bayern de Guardiola? O coração não é corruptível. Pelo menos não deveria ser. Pode tentar iludir-vos dezenas de vezes, como num grande número de contorcionismo cinematográfico de Christopher Nolan mas, no fim, apenas conseguem ser fiéis à vossa identidade. A do vosso clube, não aquela que vos vendem. Por isso, e mesmo que não sinta as cores, acredito no Leicester. Mais importante que isso, identifico-me. Porque cresci a acreditar em contos de fadas, embalado pela crença inabalável que um sapato de cristal, perdido numa escadaria, não muda o curso da história. Cresci a acreditar que nunca devemos subestimar o poder de homens que sobem na vida a pulso. Aqueles que são incorruptíveis.

O poder destes. Dos incorruptíveis. Lembro-me sempre dele quando vejo o Leicester de Claudio Ranieri jogar. Um treinador que, quando chegou em Agosto do ano transacto, se sentou a ver todos os vídeos dos jogos da equipa da pretérita época desportiva e percebeu as amarras físicas, metodológicas e mentais  daqueles que viriam a ser os seus jogadores. Quando, no primeiro dia de estágio, explanou junto dos seus futebolistas o plano para a campanha que mentalmente havia idealizado, sentiu o medo no ar. Medo das tácticas. Do 'Calcio', da prisão italiana que erroneamente está acoplada a todos os professores da 'velha Lutécia'. Apesar de enorme admirador de todos os treinadores que constroem novos sistemas tácticos, Ranieri sabia que, ali, a chave do sucesso estaria na liberdade. Ranieri queria que a táctica girasse em torno do material humano que tinha em mãos, e nunca o contrário. Soltos, sabedores da carga competitiva presente em Inglaterra, tiveram o voto de confiança que até agora alicerça a sua liderança na 'Premier League': não há 'corrupção táctica'. Ninguém vai preso, desde que não cometa o crime de romper o pacto de provar que um campeonato não é um teste de matemática.

Em Inglaterra deve-se treinar afincadamente, mas não demasiadas vezes. O jogo é mais intenso, e exige um maior período de recuperação. Se jogas ao sábado, o domingo deve ser folgado. Na segunda-feira, um treino ligeiro, como se faz em Itália. Terça-feira, até rasgar. Quarta, repouso absoluto. Quinta-feira absurda e, à sexta, o jogo de sábado é preparado com uma palestra de estudo específico do adversário. Sábado jogo, e domingo folga. Este é o ciclo de Ranieri. Assim, assegura-se de que, por semana, os jogadores tenham dois dias de descanso absoluto, compenetrados num discurso de que o futebol é um jogo macabro que tem o dom de fazer com que a paixão triunfe sobre a lógica.

Não importa aquilo que as casas de aposta digam e os 'experts' possam pensar; quando a corrida começa, "all bets are off". Não fiquem surpresos se alguém decide saltar o guião e levar este pacto até às últimas consequências de Maio. A parte mais difícil já passou: a decisão de agir. O resto é mera tenacidade. Os medos são papéis rasgados antes de serem lidos. O Leicester de Ranieri faz aquilo que decidiu fazer. O hino ao processo é apenas a recompensa antecipada. Merecem-no.

António Borges 

Comentários

  1. Contos de fadas toda a gente conhece e gosta, mas nem todos conseguem explicar bem a história. Sim, o Leicester está a fazer uma campanha excelente, impensável e que poderá levar à ruína muitas casas de apostas. Mas infelizmente, não será campeão e não poderá repetir a mesma façanha. Porquê? Porque não bastam paninhos quentes nem diversas folgas, não no futebol. Para mim, é absolutamente ridículo que um profissional de uma determinada área, que ganha balúrdios, tenha 2 folgas semanais só porque precisa de descansar. Não é por acaso que José Mourinho criticava Ranieri. Ele sabe que Ranieri é um flop enquanto treinador no verdadeiro significado da função e continua a ser. Simplesmente usa um método em que, não tem que se chatear muito com os treinos, dá umas palmadinhas nas costas e de certa forma são os jogadores que definem o que querem ou não fazer até ao jogo. É uma palhaçada que os jogadores do Leicester nunca vivenciaram e naturalmente têm uma reação positiva. Quem nao gosta de trabalhar dia sim dia não, menos de 3-5h por dia? Quem não gosta de ter uma semana de férias assim do nada, por causa duma aposta que nao concretizaram? Qualquer um gosta, mas experimente-se fazer isso no ano a seguir e vejamos os resultados. O que Ranieri faz não é aplicável, é uma gestão à italiana, regulada por baixo em que o treinador passa despercebido. Tem coisas positivas mas não faz verdadeiramente sentido. O grande responsável pelo sucesso são, sem duvida, os jogadores mas quem os foi buscar? Quem identificou talento e potencial para jogar com qualidade a este nível? Não foi Ranieri, foram os scouts e o respetivo departamento de prospeção que já está a ser cobiçado pelos tubarões. Valoriza-se demasiado a não função desempenhada de Ranieri enquanto treinador. Provavelmente, Ranieri nem sabe o que fazer nos ditos dias de descanso, por não saber o que treinar a uma intensidade que promova mais a recuperação ativa em vez da recuperação passiva. Pouco trabalho para si, não chateia os jogadores, mas recebem todos o mesmo a troco de menos trabalho. Podes e deves treinar todos os dias mas com folga depois do jogo. É mais do que suficiente. Ranieri não é um génio, é antes um velhinho porreiro que os jogadores ate gostam e depois dão o retorno. E no proximo ano? Quando tiverem jogos a meio da semana para as competições europeias? Certamente o metodo nao será o mesmo e o choque causado pela mudança de metodos pode ser mais prejudicial que o choque causado pelo acrescentar de carga, em virtude dos jogos a mais que vai disputar e de ter menos tempo disponivel para recuperar. Cá estaremos para continuar a acompanhar este fenómeno e tirar as devidas ilações.

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