A despedida de Raúl recorda-nos aquilo que nós (e o futebol) já não somos

Tudo tem um fim. Desde uma insuportável tristeza até à mais ingénua das felicidades. O tempo não é um juiz, porque não tem critério nem razões para a sua crueldade. O tempo é uma guilhotina que nunca descansa, que nunca emperra; ímpia e selvagem no seu labor diário. É terrível pensar naquilo que já não temos ou aquilo que fomos. Velhos prematuros, somos apanhados a olhar para trás mais vezes que aquelas que o presente nos deveria permitir. Saudades dos rabiscos dos nossos heróis do relvado no caderno da escola, do nosso grupo do bairro que se gastou com o uso, livros cheios de pó que jamais voltaremos a abrir, ou jogos da Mega Drive metidos numa caixa; pósters com as bordas rasgadas e gastas, e uma camisola do nosso clube que já não nos serve porque agora medimos mais de um metro e cinquenta.
Sinto uma amargura ridícula quando penso no prazer que tinha no meu próprio clube. Sou do FC Porto desde garoto. Sem motivo algum, como devem ser estas coisas. As cores da tua equipa emergem do nada. Racionalizar o sentimento é demasiado britânico para o meu gosto. No bairro, cada um era de quem era. Um punhado do Porto, outro do Benfica, e quatro loucos do Sporting. Depois, os velhos, falavam-nos do Belenenses, mas para nós era como uma camisola interior calada, que nunca se via ou ouvia.
Ontem à noite, enquanto repassava no telemóvel os melhores momentos da carreira de Raúl e, simultaneamente, tentava (é a palavra, lamento para os indefectíveis) ver o documentário do Cristiano Ronaldo, senti-me triste por perceber que nada é o que era. Enquanto via Raúl com aquele velho traje madridista de algodão, com a publicidade da 'Teka' na camisola, ou os seus treinadores com aqueles fato de treino dignos da máfia nova-iorquina dos anos noventa, girar os olhos para aquele filme - uma ode à egolatria, abdominais definidos e carros potentes - era tão desolador como quando a nossa mãe, em pequenos, nos mandava comer a sopa. Resignei-me.
Nem Raúl era um herói exemplar, nem Cristiano é um vilão. Nem o futebol é sensatez. Apenas me deu um ataque de nostalgia. Só pensava no futebol que via enquanto crescia. Na mudança de paradigma. Na reportagem com Pedroto, Valdano, Jorge Costa ou Hierro, Carlos Queiroz...vinham falar dos valores do futebol, da formação, de como eles abriam caminho à força. Cândido Costa falava da generosidade dos mais velhos, como Paulinho Santos; Diogo Luís da felicidade que era estar na equipa A do Benfica. Tudo isso me parecia sensato, acessível, desportivo, são. Tinha 13 anos, e histórias como essas fazem-te acreditar num desporto que, além do dinheiro, é carvão para a máquina anímica. 
Não acredito que possa alguma vez renunciar às minhas cores. O FC Porto será sempre parte do meu coração. Das minhas recordações, da minha vida, dos meus primeiros pontapés na bola. Mas já não o sinto como antes. A culpa não é tua, meu Porto, é minha. Recordo-me quando vencemos a Liga Europa em 2011 e fui dar uma volta a pé, enquanto na rotunda da cidade se festejava a conquista europeia. Em 2004 não reagi tão mortiçamente. Delirava, completamente. Esta despedida de Raúl voltou a recordar-me esse sentimento perdido.
Nem Ronaldo irá acabar com o madridismo, nem Raúl alguma vez o poderia salvar. Mas o tempo alia-te com estes e aqueles. Sei o que quero para a minha vida, e sei que não são carros de luxo, filmes egomaníacos, nem reivindicações gritadas em direcção à multidão. O futebol é muito mais que os golos, que os recordes ou os títulos. O futebol é muito mais que o próprio futebol. Por exemplo, como quando Carlos Alberto - um rapaz que desapareceu - emergiu naquela noite quente, em Gelsenkirchen, para mudar para sempre a história de um clube.
Dava qualquer coisa para voltar a sentir o FC Porto como quando o Capucho jogava com aquele meião descaído e dilacerava as defesas contrárias. De ver um Braga-Porto com os nervos de quem vê a final de um Mundial. Era outra época. Talvez por ser outro Zezé. Alguém diferente. Nem melhor nem pior; porque o tempo é uma guilhotina que não necessita de se explicar. Há anos que encontrei o meu sítio à procura, quase clandestinamente, da oportunidade de desfrutar a sós de um Rio Ave-Chaves para a Taça no Estádio dos Arcos. É a antítese do mundo. Talvez a distância que separava Raúl do Rio Ave - ou de outra equipa qualquer sem expressão internacional - não fosse assim tanta. Talvez em ambos os mundos estivesse a humildade, o esforço, um magnetismo. Aquilo que tenho claro é que há um abismo entre aquilo que representa o futebol dos fundos, da egolatria, e aquelas minhas equipas do FC Porto. E se tenho que encerrar este texto, que o seja: boa sorte, futebol, porque contigo irá estar sempre uma parte do que fui, mas não do que sou.

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