Valar Dohaeris: o homem que serviu a Bélgica que a todos apaixona

"Todos os homens devem servir" (Valar Dohaeris), não é? Há profissões que inflectem mudanças a um ritmo necessariamente diário. Cozinheiros, serviços camarários de limpeza, ou até o sapateiro que conserta aquele buraco que faz daquele calçado um acessório com um extra pelo qual não pagamos. Mas depois há os contadores de histórias. Essas personagens, que não dormem mas sonham, são tão necessários como os primeiros. Cheios de ideias e, não (n)os oprimam: andar sempre com um pé entre a ficção e a realidade é uma vantagem.  

Michel Sablon é um desse viajantes. Entre a teoria e a acção, o belga sonhava servir. Porém, via-se atado a uma tradição metodológica ultrapassada que arrastava a Bélgica para lugares no ranking UEFA longe dos preconizados nos anos oitenta.Terminados os dias de de Vercautaren e Scifo, estava na hora de sarar as feridas belgas infligidas, em solo próprio, no Euro 2000. Não foram muitos os surpresos pela catástrofe caseira. Aquela que viria a constituir-se como a nova constelação belga crescia longe da Jupiler League. Como em França e Holanda, países pródigos em servir como trampolim para um talento bem aconselhado e estruturado mentalmente. Michel Sablon via a progressão além-fronteiras, e temia que aos seus Diabos Vermelhos nunca competissem com uma Alemanha, Argentina. Em 2002, as atenções de Szabo viraram-se para França, com quem passaram a ter reuniões técnicas regulares. O mesmo com a Holanda, Alemanha, sempre na feliz - e certeira - convicção de que seguir um bom exemplo, mais que uma decisão ajuizada de futuro, é a forma mais sublime de plagiar competência e sucesso. Nada acontece do dia para a noite mas, se há uma década as selecções de base não passavam da vigésima posição no ranking que dita performances, hoje não baixam do 'top 10'.

Para Sablon, tudo começou com uma folha A4 em branco. O que lá foi escrito não reinventou a roda, mas estabeleceu uma coordenação entre os clubes belgas que, pura e simplesmente, não existia. Os novos cavaleiros da mudança belga juntaram-se a uma mesa redonda e traçaram um plano que abrangesse os três grupos em que importava focar o crescimento em qualidade: clubes, selecção nacional e professores de educação física nas escolas. A mesma visão para os três departamentos, agora em uníssono estratégico. "Pedimos que se abolisse a defesa a três elementos, extremos bem abertos com liberdade para errar e três médios dotados do local onde tudo começa: recepção de bola de excelência. Após alguns retrocessos problemáticos (os clubes são empresas interessadas em vencer agora, certo?), todos começaram a identificar a marca traçada em 2002. E começaram a acreditar no crescimento sustentado e no plano a longo prazo. Olhando hoje para a Bélgica, valeu a pena, não?

O Standard de Liége e o Anderlecht foram ossos duros de roer. A comissão técnica liderada por Sablon queria gravar 1500 jogos das camadas jovens, mas a Federação levantou objecções que, mesmo assim, não impediram que, em 2007, os sub-17 belgas, liderados por Hazard e Benteke, terminassem nos primeiros quatro lugares do europeu da categoria naquele ano. Pela primeira vez em toda a história da Bélgica. No ano seguinte, um grupo ligeiramente mais velho, composto por Kompany e Fellaini, fez boa figura nos olímpicos de Pequim. Resultou. Há mais factores a dar apoio a Sablon. Num centro politicamente e financeiramente tão dinâmico como Bruxelas, é perfeitamente normal que surjam talentos cuja descendência foge ao puro ADN belga, como Nacer Chadli ou Dembelé.

A marca belga, hoje, é cara. Muito graças a Michel Sablo, uma personagem que, moralmente, assemelha-se muito à criada por George R.R. Martin, e que tem como objectivo guiar a jovem Arya Stark de volta ao Norte. Tal como aquele que a Bélgica nunca deveria ter perdido.

António Borges

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