Catar: estará o Médio Oriente a preparar-se para ter um campeão mundial?
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Em 2007, a
Aspire Academy, sediada no Catar, enviou a primeira vaga de observadores de
elite para África. Missão: identificar os mais brilhantes talentos locais. O
grosso destes jovens (todos nascidos em 1994), tornou-se na primeira turma de
um projecto que a Aspire denominou de 'Sonhos do Futebol'. Quatro anos
volvidos, a mesma turma apresentou-se na 'Milk Cup', um dos torneios juvenis
mais prestigiados a nível mundial e - como Rooney, Giggs ou Walcott podem
atestar - o palco de eleição para futuras super-estrelas. Nessa final, a
Aspire Academy derrotou, de forma inapelável, o Manchester United, por claros
5-1.
É difícil compreender como é que uma equipa sem afiliação profissional, estabelecida num
país longínquo e deserto, conseguiu reduzir uma equipa de calibre mundial como
o Manchester United a, digamos, rapazes que dão uns chutos na bola. Não há
antecedentes de algo similar. Não era suposto acontecer. Não pode. Excepto, é
claro, que aconteceu mesmo. O retumbante sucesso desta Academia sugere que o Catar talvez tenha descoberto os segredos do desenvolvimento do jogador de
elite. O sucesso do projecto é real graças às toneladas de dinheiro nele
investidos, conhecimento e formação de alto nível, e ‘scouting’ a uma escala
desmedida. Mas a pergunta que fica no ar, é: porque é que o Catar se preocupa
em construir um império juvenil de futebol?
Oficialmente, o
projecto ‘Sonhos do Futebol’ tem cariz humanitário. É um meio pelo
qual,crianças africanas carenciadas e com algum talento, tem a possibilidade de
se lançarem no futebol profissional. Enquanto a maioria destes jovens não passa
muito tempo nas instalações do Catar (a Aspire possui uma filial no Senegal
para onde são enviados os restantes), ganhar um bilhete de saída de África, e
outro com uma bolsa de estudo, tem sempre que ser encarado como um bilhete de
lotaria premiado. A habilidade da Aspire em recrutar jogadores de múltiplos
países subdesenvolvidos numa idade tão precoce (nunca tem mais que 14 anos) –
distancia-a das práticas europeias, onde o recrutamento estrangeiro é mais
regulado e apertado. Isto é especialmente verdade em países como Inglaterra,
onde cidadãos não-europeus tem que ter pelo menos 18 anos, bem como estar na posse de uma licença
de trabalho que lhes permita competir. Contrastando, os cataris, podem
contratar o jogador africanos que bem entenderem. O seu limite diz respeito, única e exclusivamente, à sua conta bancária. Que parece ser ilimitada, diga-se.
Em última
instância, as práticas da Aspire são um ‘upgrade’ relativamente às relatadas noutros pontos do continente asiático. Encontrar diamantes africanos é um
negócio de muitos milhões, e como qualquer negócio dessa natureza, procura-se
contornar as leis através de mercados obscuros. Aquilo que muitas vezes se
observa neste continente é o contínuo e irreparável recrutamento de jovens
talentos – alguns com menos de 10 anos – e, à medida que estes progridem, os
seus contratos são comprados e vendidos, ficando os directores das academias
com larga parte do lucro. É um sistema muito parecido com o do basebol juvenil
na República Dominicana, onde as academias clamam ter na mão o direitos sobre o
jogadores, que são pagos com pouco mais que esperança num futuro melhor. E
longe dali.
A juventude é
ambígua quando se trata de um africano. Se um observador identificar um talento
de 20 anos que possa passar por um rapaz de 17, a margem de lucro futura será,
obviamente, superior. Se forem observar os melhores momentos da Milk Cup desse
ano, reparam na forma, até algo ridícula, com que a Aspire maniatou o
Manchester United. Ao lado dos britânicos, o conjunto da Aspire parecia mais
velho. Em tudo. Olhem para o exemplo do avançado, que nesse jogo apontou três
golos. Depois tirem as vossas conclusões sobre a sua idade.
É compreensível
que o foco moral não esteja na real idade destes jovens, desde que a Aspire procure,
genuinamente, resgatá-los da pobreza. Mas isso passa a ser um problema se, todo
este empreendimento e investimento, tem como real objectivo aumentar o nível da
selecção nacional do Catar. O país vai receber a edição de 2022 do Mundial de
futebol e, de acordo com as regras FIFA, a nação hospedeira tem assegurada a
sua qualificação directa para a prova. O Catar, que está muito longe do topo no
ranking FIFA, nunca conseguiu esse feito por mérito desportivo. Se esta
nação do Meio Oriente é capaz de recrutar jogadores vindo de todos os pontos de
África, as perspectivas de sucesso na competição aumentam exponencialmente. O Catar nega estes planos megalómanos de incorporar os jogadores da Aspire na
equipa que levarão ao Mundial, argumentando com a proximidade com que os
jogadores da academia trabalham junto das federações das quais são oriundos.
Mais de 50 jogadores da Aspire representaram as categorias de base dos seus
países de origem, e nenhum futebolista da Aspire alguma vez alinhou por
qualquer selecção catari. O Catar, no entanto, tem um largo histórico, nas mais
diversas modalidades, de pagar a atletas estrangeiros para que estes compitam
com as suas cores. Embora oficialmente o Catar ainda não tenha anunciado a
‘compra’ de algum futebolista, as dimensões e os tentáculos da Academia Aspire
sugerem que os cheques já começaram a ser assinados.
O projecto
‘Sonhos do Futebol’ enquadra-se na ambição do Catar em crescer economicamente e
atingir reconhecimento internacional através do desporto. Enquanto o sucesso da
Academia no terreno tenha granjeado fama mundial ao país, os cataris poderiam,
presumivelmente, lançar um projecto humanitário que representaria um melhor, e
mais limpo, uso para o seu dinheiro. E se elevar o potencial do jogador
africano é o objectivo, investir em infra-estructuras, programas de treino, ou
equipamento, seria mais benéfico e abrangente do que enviar um punhado de
jogadores para as suas instalações no Catar e Senegal. O palpável, é que o Catar reserva os seus recursos apenas para alguns sortudos. Durante o ano
escolar, os seus recrutas jogam contra a elite todos os fins-de-semana,
reservando o Verão para participar nos mais conceituados torneios juvenis. O
Manchester United provavelmente até saberia o que iria encontrar nessa Milk
Cup, dado que são uma visita regular às instalações do Catar. Ocasionalmente,
alguns jogadores da equipa sénior viajam para Doha, a fim de servirem de
mentores dos mais brilhantes representantes da Aspire. E, como a academia não
possui afiliação profissional, as academias mais profícuas do mundo inteiro
sentem-se à vontade para partilhar as suas metodologias de treino. A Aspire tem
também os recursos financeiros para atrair os maiores pensadores da modalidade.
É frequente ver, a exemplo, Xavi ou Guardiola nas suas instalações, dando
palestras em inglês, traduzidas na hora por uma vasta equipa para cinco
línguas, preocupada em nada escapar aos protegidos da Aspire.
Enquanto a
primeira fornada do projecto ‘Sonhos do Futebol’ não sai do forno, os jogadores
da Aspire estão, lentamente, a abraçar carreiras internacionais. O tal avançado
(que apontou três golos ao United), representou recentemente a selecção sub-20
senegalesa, e assinou contrato profissional com uma equipa de primeiro plano da
Noruega. Porém, até que faça a sua estreia pela equipa A do Senegal, continua
com mãos e pés desatados para representar o Catar. Assim surja o ‘convite’,
claro. Com a qualificação para o Mundial de 2018 longe de estar assegurada – se
o Catar lhe oferecer nacionalidade e passaporte catari – o avançado será um tremendo
reforço para a linha da frente do Catar. Será fiel ao Senegal, ou subirá ao relvado com as cores da casa adoptiva? Assim que ele decida, os reais motivos
por detrás do maior investimento no desenvolvimento do jogador de elite
tornar-se-ão cristalinos.
António Borges
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